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O frasco das novas políticas

Devia estar a dormir, mas de tanta coisa que devia fazer e não faço, esta deve ser das melhores.

Hoje ao arrumar encontrei estes post-its guardados religiosamente. Enquanto vasculhava nos meus cadernos por mais vestígios de forma a enquadrar melhor texto e imagens, percebi a deliciosa coincidência que me foi convencendo a fazer frente ao sono.

Quero falar-vos - e mostrar-vos! – um trabalho feito em fevereiro de 2016. Estava a estudar Teatro e Comunidade na ESMAE, mas o meu enquadramento é talvez o que menos interessa.

2016 foi o ano da eleição de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República, que substituía Aníbal Cavaco Silva numas eleições que aconteceram precisamente a 24 de janeiro (2016). O segundo lugar pertenceu a Sampaio da Nóvoa e o terceiro a Marisa Matias. O governo (2015) era formado pela famosa geringonça dos partidos de esquerda: PS, PCP, BE e PEV, depois de Cavaco Silva ter até indigitado Passos Coelho do PSD como primeiro ministro. Já não vivíamos em plena crise 2008, mas se bem se recordam, os cintos ainda andavam apertados.

Voltando ao meu enquadramento.

Tinha regressado ao teatro porque isto é bicho que vive no corpo e não dá descanso, por muito que se tente e que aleije que farta. Bem, estava então a fazer uma pós-graduação em teatro e comunidade. Algures em fevereiro numa disciplina projeto que ocupou todo um fim-de-semana frio e chuvoso, daqueles bem à moda do Porto, fomos desafiados a fazer um performance/experiência no espaço público sem nos denunciarmos. O que quiséssemos, onde quiséssemos desde que no espaço público, ou melhor, poderíamos trabalhar um espaço privado de acesso público. Lembro-me que na altura andava inquieta com a apatia. O povo queria mais, o povo estava insatisfeito, o povo reclamava nos cafés, mas o povo não sabia bem como agir. O povo também estava cansado, trabalhava dia e noite e só queria estar sossegado. Eu estava incluída nesta mescla de querer agir e ao mesmo tempo querer estar quieta no meu canto. Assim que nos desafiaram para ir para a rua... só quis ir para casa. É anticlímax, é verdade. Eu que sempre tive o sangue quente para debates, que sempre quis fazer parte da luta, que sempre quis estar na linha da frente pela mudança, só queria estar no meu sofá. Lembro-me inclusive de tentarmos adiar o projeto, de enviar mensagens aos meus colegas desabafando que “era só o que me faltava andar agora pela rua”. Não tive outro remédio se não agarrar nos minutos que me foram dados para esboçar alguma coisa. Sabia exatamente o que queria fazer. Esbocei num caderno:

Café. Abrigo – Refúgio da crise. Trocam-se políticas. Políticas de jardim. O Frasco das novas políticas. Deixe a sua política. Trocam-se políticas. Parlamento de café. Parlamento vai ao jardim. Discussão de novas políticas.

Par(a) lamento.

Acabei por me decidir pelo café. Preparei tudo. No dia seguinte, um domingo, fui para a esplanada de um café. A chuva tinha parado. Montei o meu estaminé: cartazes, o meu frasco das novas políticas, post-its, canetas. Lembro-me que estive muito tempo à conversa com dois senhores que até hoje não perceberam bem o que aconteceu. Eu era uma miúda que queria escrever ao provedor, queria ouvir o que se discutia nos cafés, queria discutir, queria anotar e fazer chegar as preocupações que nos assolavam a todos. Eles habituados a desabafar sem serem notados foram perdendo o medo e à medida que o tempo passava iam dizendo uma e outra coisa que gostavam de mudar. Ditavam-me e eu escrevia. Foram chamando pelos outros senhores que paravam por ali. Durante a tarde o movimento foi aumentado. Estava plantada mesmo ao lado da Câmara Municipal do Porto o que acabou por ajudar. O frasco foi enchendo com “políticas” que uns podiam identificar como de direita, outros como de esquerda. De todas as cores. Concordei e discordei de muitas ideias que me passaram pelas mãos. Cheguei ao fim do dia com o coração cheio. Um dia passado em pleno debate sobre educação, cultura, economia, finanças, segurança... Durante um dia pessoas que não se conheciam de lado algum foram argumentando, respeitando o espaço de cada uma e pondo de lado a frase “não gosto de política”. Não digo que não ouve sangue a fervilhar em alguns debates, mas sempre com dignidade e respeito. Hoje ainda guarda o frasco das novas políticas, os post-its, a vontade de não estar cá só de passagem. Hoje não me lembro do frio que sentia, do casaco ou dos pés molhados.

Estar em casa, ficar dentro dos nossos muros, é maravilhoso, mas essa “nossa vida” decide-se na rua, no “sistema político” que tanto nos aborrece. Viver, fazer parte de algo, sentir que temos na nossa mão, na ponta da nossa caneta a força de mudar é uma sensação que nos acompanha para a vida. E há coisas que parecem tão pequeninas, tão insignificantes, tão incapazes de produzir mudança, mas confiem, acreditem. O simples ato de correr atrás, de tentar, muda-nos. E isso já é um ótimo começo para fazer desta velha bola poluída, um lugar melhor para viver.

Vota. Aguenta a fila, a espera, o frio, o desaforo, o desinteresse. Tenta. É disso que te vais lembrar no futuro.

(Desculpem-me as vírgulas fora do sítio, as gralhas.)